sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Análise do poema "Leito de Folhas Verdes", de Gonçalves Dias


A lírica amorosa de Gonçalves Dias, maior poeta da primeira geração de nosso Romantismo, é marcada pela impossibilidade da realização amorosa. A chamada "lírica do amor interrompido" ecoa os sofrimentos vividos pelo poeta em seu malogrado relacionamento afetivo com Ana Amélia (cuja família recusou seu pedido de casamento). Assim, há quem afirme que Gonçalves Dias teria escrito a maior parte de seus poemas amorosos pensando nessa mulher inatingível – como é o caso do célebre Ainda uma vez, Adeus!
Mesmo nas poesias de caráter indianista pode-se observar a frustração quanto à concretização do amor. É o que percebemos no poema Leito de folhas verdes.


Leito de folhas verdes

Por que tardas, Jatir, que tanto a custo

À voz do meu amor moves teus passos?
Da noite a viração, movendo as folhas,
Já nos cimos do bosque rumoreja.

Eu sob a copa da mangueira altiva
Nosso leito gentil cobri zelosa
Com mimoso tapiz de folhas brandas,
Onde o frouxo luar brinca entre flores.

Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
Já solta o bogari mais doce aroma!
Como prece de amor, como estas preces,
No silêncio da noite o bosque exala.

Brilha a lua no céu, brilham estrelas,
Correm perfumes no correr da brisa,
A cujo influxo mágico respira-se
Um quebranto de amor, melhor que a vida!

A flor que desabrocha ao romper d'alva
Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Eu sou aquela flor que espero ainda
Doce raio do sol que me dê vida.

Sejam vales ou montes, lago ou terra,
Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
Vai seguindo após ti meu pensamento;
Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!

Meus olhos outros olhos nunca viram,

Não sentiram meus lábios outros lábios,
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
A arazóia na cinta me apertaram.

Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
Já solta o bogari mais doce aroma
Também meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exala!

Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes
À voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
A brisa da manhã sacuda as folhas!




No poema em tela, o poeta filia-se à tradição medieval das canções de amigo imprimindo-lhe a cor local.
Na primeira estrofe, o eu-lírico feminino anseia pela volta de seu amado, Jatir, (1º e 2º versos) e questiona o porquê de sua demora. Note-se que aqui, os elementos da natureza corroboram a sensação de angústia da mulher (3º e 4º versos).
Na segunda e terceira estrofes temos o leito de amor, feito sob a copa da mangueira e feito de folhas brandas. Aqui, a natureza traduz toda a doçura do esperado encontro amoroso: mimoso tapiz de folhas brandas; o frouxo luar brinca entre flores; solta o bogari mais doce aroma.
A espera se prolonga e a angústia cresce, como evidencia a metáfora contida nos versos 4º e 5º da 5ª estrofe: Eu sou aquela flor que espero ainda / Doce raio do sol que me dê vida. Ela é a flor que depende dos raios de sol (a presença do amado) para viver.
A 6ª estrofe evidencia a idealização do amor, que vence todos os obstáculos (versos 1 e 2). Da mesma forma é idealizada a figura feminina que devota total fidelidade ao seu homem, conforme observamos na 7ª estrofe.
Na última estrofe temos a desilusão do eu-lírico. Com a chegada da manhã, a esperança e a expectativa dão lugar à decepção e à tristeza, pois Jatir não responde ao seu chamado. Pede então que a brisa da manhã leve consigo as folhas do leito inútil.
Em Leito de folhas verdes temos, portanto uma síntese dos elementos mais caros à tradição romântica: o sentimentalismo, a idealização amorosa, a idealização da figura feminina, a natureza expressiva, o medievalismo e o nacionalismo (de matiz indianista).

domingo, 18 de novembro de 2007

Saudações!

Pessoal, o blog foi ao ar recentemente e está em fase de construção. Qualquer solicitação de materiais como resumos ou obras completas pode ser feita pelo e-mail: contexto.com@ibest.com.br.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

As Mentiras que os Homens Contam

Grande Edgar!

Já deve ter acontecido com você.
- Não está se lembrando de mim?
Você não está se lembrando dele. Procura, freneticamente, em todas as fichas armazenadas na memória o rosto dele e o nome correspondente, e não encontra. E não há tempo para procurar no arquivo desativado. Ele está ali, na sua frente, sorrindo, os olhos iluminados, antecipando a sua resposta. Lembra ou não lembra?
Neste ponto, você tem uma escolha. Há três caminhos a seguir.
Um, o curto, grosso e sincero.
- Não.
Você não está se lembrando dele e não tem por que esconder isso. O "Não" seco pode até insinuar uma reprimenda à pergunta. Não se faz uma pergunta assim, potencialmente embaraçosa, a ninguém, meu caro. Pelo menos não entre pessoas educadas. Você devia ter vergonha. Não me lembro de você e mesmo que lembrasse não diria. Passe bem.Outro caminho, menos honesto mas igualmente razoável, é o da dissimulação.
- Não me diga. Você é o... o...
"Não me diga", no caso, quer dizer "Me diga, me diga". Você conta com a piedade dele e sabe que cedo ou tarde ele se identificará, para acabar com a sua agonia. Ou você pode dizer algo como:
- Desculpe deve ser a velhice, mas...
Este também é um apelo à piedade. Significa "Não torture um pobre desmemoriado, diga logo quem você é!" É uma maneira simpática de dizer que você não tem a menor idéia de quem ele é, mas que isso não se deve à insignificância dele e sim a uma deficiência de neurônios sua.E há o terceiro caminho. O menos racional e recomendável. O que leva à tragédia e à ruína. E o que, naturalmente, você escolhe.
- Claro que estou me lembrando de você!
Você não quer magoá-lo, é isso. Há provas estatísticas que o desejo de não magoar os outros está na origem da maioria dos desastres sociais, mas você não quer que ele pense que passou pela sua vida sem deixar um vestígio sequer. E, mesmo, depois de dizer a frase não há como recuar. Você pulou no abismo. Seja o que Deus quiser. Você ainda arremata:
- Há quanto tempo!
Agora tudo dependerá da reação dele. Se for um calhorda, ele o desafiará.
- Então me diga quem eu sou.
Neste caso você não tem outra saída senão simular um ataque cardíaco e esperar, falsamente desacordado, que a ambulância venha salvá-lo. Mas ele pode ser misericordioso e dizer apenas:- Pois é.
Ou:
- Bota tempo nisso.
Você ganhou tempo para pesquisar melhor a memória. Quem é esse cara, meu Deus? Enquanto resgata caixotes com fichas antigas do meio da poeira e das teias de aranha do fundo do cérebro, o mantém à distância com frases neutras como "jabs" verbais.
- Como cê tem passado?
- Bem, bem.
- Parece mentira.
- Puxa.
(Um colega da escola. Do serviço militar. Será um parente? Quem é esse cara, meu Deus?)
Ele está falando:
- Pensei que você não fosse me reconhecer...
- O que é isso?!
- Não, porque a gente às vezes se decepciona com as pessoas.
- E eu ia esquecer você? Logo você?
- As pessoas mudam. Sei lá.
- Que idéia!
(É o Ademar! Não, o Ademar já morreu. Você foi ao enterro dele. O... o... como era o nome dele? Tinha uma perna mecânica. Rezende! Mas como saber se ele tem uma perna mecânica? Você pode chutá-lo, amigavelmente. E se chutar a perna boa? Chuta as duas. "Que bom encontrar você!" e paf, chuta uma perna. "Que saudade!" e paf, chuta a outra. Quem é esse cara?)
- É incrível como a gente perde contato.
- É mesmo.
Uma tentativa. É um lance arriscado, mas nesses momentos deve-se ser audacioso.
- Cê tem visto alguém da velha turma?
- Só o Pontes.
- Velho Pontes!
(Pontes. Você conhece algum Pontes? Pelo menos agora tem um nome com o qual trabalhar. Uma segunda ficha para localizar no sótão. Pontes, Pontes...)
- Lembra do Croarê?
- Claro!
- Esse eu também encontro, às vezes, no tiro ao alvo.
- Velho Croarê!
(Croarê. Tiro ao alvo. Você não conhece nenhum Croarê e nunca fez tiro ao alvo. É inútil. As pistas não estão ajudando. Você decide esquecer toda a cautela e partir para um lance decisivo. Um lance de desespero. O último, antes de apelar para o enfarte.)
- Rezende...
- Quem?
Não é ele. Pelo menos isso está esclarecido.
- Não tinha um Rezende na turma?
- Não me lembro.
- Devo estar confundindo.
Silêncio. Você sente que está prestes a ser desmascarado.
- Sabe que a Ritinha casou?
- Não!
- Casou.
- Com quem?
- Acho que você não conheceu. O Bituca.
Você abandonou todos os escrúpulos. Ao diabo com a cautela. Já que o vexame é inevitável, que ele seja total, arrasador. Você está tomado por uma espécie de euforia terminal. De delírio do abismo. Como que não conhece o Bituca?
- Claro que conheci! Velho Bituca...
- Pois casaram...
É a sua chance. É a saída. Você passa ao ataque.
- E não me avisaram nada?!
- Bem...
- Não. Espera um pouquinho. Todas essas coisas acontecendo, a Ritinha casando com o Bituca, o Croarê dando tiro, e ninguém me avisa nada?!
- É que a gente perdeu contato e...
- Mas o meu nome está na lista, meu querido. Era só dar um telefonema. Mandar um convite.
- É...
- E você ainda achava que eu não ia reconhecer você. Vocês é que esqueceram de mim!
- Desculpe, Edgar. É que...
- Não desculpo não. Você tem razão. As pessoas mudam...
(Edgar. Ele chamou você de Edgar. Você não se chama Edgar. Ele confundiu você com outro. Ele também não tem a mínima idéia de quem você é. O melhor é acabar logo com isso. Aproveitar que ele está na defensiva. Olhar o relógio e fazer cara de "Já?!")
- Tenho que ir. Olha, foi bom ver você, viu?
- Certo, Edgar. E desculpe, hein?
- O que é isso? Precisamos nos ver mais seguido.
- Isso.
- Reunir a velha turma.
- Certo.
- E olha, quando falar com a Ritinha e o Mutuca...
- Bituca.
- E o Bituca, diz que eu mandei um beijo. Tchau, hein?
- Tchau, Edgar!
Ao se afastar, você ainda ouve, satisfeito, ele dizer "Grande Edgar". Mas jura que é a última vez que fará isso. Na próxima vez que alguém lhe perguntar "Você está me reconhecendo?" não dirá nem não. Sairá correndo.

Este texto está nos livros As mentiras que os homens contam
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Trecho do livro O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?
(Fernando Gabeira).
Afinal, o que fora aquilo? O sequestro se deu muito ra­pidamente. Na parte da manhã, nada. Na parte da tarde, o carro apareceu na hora exata. Antes passou um outro carro negro do corpo diplomático. O olheiro esteve a pique de fazer o sinal e desfechar a ação. Uma vez feito o sinal, nada mais interromperia o curso das coisas. O olheiro viu, entre­tanto, que o carro negro que se aproximava tinha uma ban­deira. E no carro do americano já não usavam mais bandei­ra. Pelo menos isso tinha dito o chefe da segurança, quando namorava Vera. O olheiro se intrigou e decidiu esperar um segundo mais. Foi o bastante para perceber que o carro era do embaixador de Portugal. Ufa, deixei praticamente a piz­za cair na mesa. íamos nos enganar de século.
O motorista do embaixador não chegou a perceber tu­do. O que ele viu foi um carro barrando sua passagem na rua Marques. Ele parou e já apontavam uma pistola contra sua cabeça, enquanto dois homens entravam no banco de trás e dominavam o embaixador. O motorista foi empurrado para o lado direito, seu quepe foi arrancado e imediatamente en­terrado na cabeça do jovem, que agora iria dirigir o Cadillac e partir a todo vapor. Para onde? Quase ninguém viu a ope­ração. Nem dona Elba Sotomayor, mulher de um oficial da Marinha, que estava preocupada com o movimento na rua. Ela chegara a telefonar para a polícia pois o preço da liber­dade é a eterna vigilância. A polícia perguntara de que se tratava e dona Elba disse que havia um carro parecendo rou­bado. Pediram a placa, ela leu a placa e eles responderam do outro lado da linha: "Tudo bem. É um carro legal".
O forte golpe* que o embaixador recebeu na cabeça se deu no momento do transbordo. Ele foi retirado para a kombi e julgou que ia ser morto ali mesmo. Ele tentou se mexer e um dos companheiros que o mantinham pensou que que­ria fugir e golpeou sua cabeça. Foi horrível para todos nós, sobretudo para o companheiro que o golpeou. Sempre que podia, ele queria saber notícias, se sentia dores na cabeça, se ainda sangrava. Tudo aconteceu porque estavam nervo­sos, e nada mais natural do que estar nervoso ali, no mo­mento do transbordo, quando ele seria enfiado num saco e a kombi rumaria para a Barão de Petrópolis, tendo diante de si um grande obstáculo: o túnel Rebouças. Todos podem imaginar que entrar no túnel foi muito fácil, mas foram quatro quilómetros de ansiedade sobre o destino que encon­trariam ao sair do túnel.